Câmara aprova projeto que pode tornar obrigatória a verificação biométrica para acessar plataformas online, reacendendo o debate sobre privacidade, anonimato e direitos fundamentais na internet
O Brasil pode estar prestes a adotar uma das medidas mais controversas de sua história digital. A Comissão de Comunicação da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 1380/25, de autoria do deputado Jorge Goetten (Republicanos-SC), que altera o Marco Civil da Internet para tornar obrigatório o reconhecimento facial de usuários no acesso a redes sociais.
A proposta ainda será analisada pela Comissão de Constituição e Justiça e, posteriormente, pelos plenários da Câmara e do Senado — mas já provoca reações intensas entre especialistas em tecnologia e direitos humanos.
O que o projeto propõe
O texto visa combater perfis falsos, fraudes e crimes virtuais, impondo a verificação facial como forma de autenticação. A medida, segundo seus defensores, reforçaria a segurança das contas e aumentaria a responsabilidade de quem atua no ambiente digital.
Porém, o relator Alex Manente (Cidadania-SP) alterou pontos centrais da proposta original. Agora, a autenticação não será feita pelas redes sociais, mas sim pelos sistemas operacionais (como Android e iOS), que passarão a exigir reconhecimento facial no cadastro de usuários.
A justificativa é evitar que cada plataforma crie seu próprio banco de dados biométrico — algo considerado inseguro e de difícil fiscalização.
Usuários que não realizarem o recadastramento no prazo de um ano após a entrada em vigor da lei terão suas contas bloqueadas.
Dados biométricos e privacidade
Os dados biométricos são classificados pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) como informações sensíveis, exigindo tratamento rigoroso.
O professor Juliano Maranhão, da Faculdade de Direito da USP, alerta:
“A grande dificuldade está em quem fará a gestão do consentimento e o controle dessas informações.”
O substitutivo do projeto também redefine legalmente o que são dados biométricos e reconhecimento facial, atualizando o Marco Civil e buscando criar um arcabouço jurídico mais robusto — embora a eficácia e segurança dessas medidas ainda sejam amplamente debatidas.
Segurança versus liberdade
A proposta reacende o embate entre segurança digital e liberdade de expressão.
“É um trade-off entre segurança e direitos fundamentais. Ganha-se em controle, mas perde-se em privacidade e autonomia”, explica Maranhão.
A Constituição Federal proíbe o anonimato, mas o ambiente digital trouxe novas nuances.
Especialistas lembram que há diferença entre anonimato absoluto e pseudonimato — quando a identidade real pode ser revelada apenas sob ordem judicial.
Obrigar o reconhecimento facial de todos os usuários pode inibir a participação política, o ativismo e as denúncias, que frequentemente dependem de certo grau de privacidade para ocorrer de forma segura.
Precedentes internacionais e riscos
O Brasil não seria o primeiro país a adotar identificação obrigatória, mas estaria entre os mais rigorosos.
Na China, o reconhecimento facial é amplamente usado em espaços públicos, e no Reino Unido, testes de vigilância geraram alta taxa de falsos positivos.
Entidades como a Anistia Internacional pedem a proibição total de tecnologias de vigilância facial em massa, alertando para riscos de discriminação algorítmica, especialmente contra mulheres e minorias étnicas.
Impactos práticos e sociais
Se aprovada, a medida pode agravar a exclusão digital: pessoas sem smartphones, idosos e indivíduos sem documentos oficiais com foto podem ficar impedidos de acessar redes sociais.
Também surgem dúvidas técnicas:
- Como lidar com contas compartilhadas ou dispositivos públicos?
- E com gêmeos idênticos ou pessoas com alterações faciais?
- O sistema bloquearia usuários por erro de leitura facial?
Além dos desafios operacionais, o texto aumenta o poder das big techs — já que Google e Apple, como detentoras dos sistemas operacionais, passariam a controlar o acesso digital de milhões de brasileiros. Isso levanta questões de soberania tecnológica e segurança nacional.
Alternativas possíveis
Especialistas em direito digital defendem soluções menos invasivas para combater fraudes online, como:
- Verificação de identidade opcional, com selo de autenticidade;
- Sistemas de reputação e monitoramento de comportamento suspeito;
- Melhoria dos canais de denúncia e resposta rápida;
- Educação digital e fortalecimento das investigações policiais sem vigilância em massa.
O que vem a seguir
O texto ainda precisa passar pela CCJ antes de seguir ao plenário.
Para o deputado Goetten, autor da proposta, o anonimato é “um dos principais facilitadores de crimes virtuais”.
Mas, para entidades civis e especialistas, a medida ameaça direitos fundamentais e pode instaurar um ambiente de vigilância permanente, incompatível com uma sociedade democrática.
O debate sobre reconhecimento facial obrigatório nas redes sociais revela um dilema profundo:
👉 a internet será um espaço de liberdade e privacidade, ou um território de controle total?
A resposta que o Brasil der a essa questão definirá o futuro de sua democracia digital.


